Certos verbos, quando no infinitivo, indicam acontecimentos indeterminados no tempo. A cor, na série de trabalhos apresentados por Everardo Miranda na Galeria Anita Schwartz, é apresentada no infinitivo: seu tempo é indeterminado.
Estas sutis densidades da cor emanam de tramas recortadas em alumínio, quase sem espessura, suspensas como o quadro na parede. Situam-se na região de afastamento entre a pintura e a arquitetura. Como na vertente construtiva brasileira, com que o artista claramente dialoga, a investigação do espaço se estabelece em uma zona de contato entre o plano e o tridimensional.[1] Mas, distinguindo-se dos interlocutores históricos, os planos ativados por Everardo Miranda produzem indeterminações da cor no espaço, que são percebidas apenas com o tempo. Como na tradição construtiva, está em jogo uma continuidade peculiar entre a pintura e a escultura, ambas tomadas em sentido ampliado por um diálogo com a arquitetura. Porém, aqui, limites e distâncias são embaçados, como quando atravessamos nuvens em uma estrada.
Enquanto constrói grades brancas, como a própria parede, de modo que pudessem talvez se unir à arquitetura e reativá-la em um mural monocromático, o artista, como um pintor cético que secretamente deseja as cores, trabalha para que esta ressurja nas cercanias de seu secreto lugar de origem. É que, como nebulosa, a luminosidade segue através do espaço, cruza distâncias. A densidade limiar da luz preenche o vão entre a pintura e a parede. A cor, partindo de onde não é vista, migra entre as superfícies, existe no seu rastro. Vive fora do quadro: rumor e névoa. Todas as distâncias agora são alteradas, perdem nitidez. Então, a incerteza sobre as coisas nos envolve.
Mesmo que constantemente desafiada, a projeção do espaço em perspectiva se confunde com o olhar natural e organiza, a todo momento, o modo como percebemos o espaço. A grade – muito presente no trabalho de Everardo –, é retomada como fator de movimentação ótica daquele espaço historicamente sedimentado. É um elemento necessário para um processo experimental, uma reflexão sobre como percebemos o espaço no momento mesmo em que o habitamos, na iminência do aparecimento. As ressonâncias da tradição da pintura são mais fortes quando o desenho da trama busca reverter, com volume e profundidade ilusionistas, sua própria condição planar. Porém, logo que a proximidade com a arquitetura evoca o plano, a ilusão contradiz a experiência concreta.
Em O Sole mio (2009) a experiência de imersão acontece em um espaço público. Para o outlet Soratte, próximo de Roma, Everardo desenha um piso cuja trama em cinzas evoca o claro–escuro da tradição da pintura italiana. E com a luz natural, as sombras projetadas no piso pela arquitetura se integram ao jogo ilusionista desenhado a partir de duas grades deslocadas. O visitante transita física e visualmente em espaços cujas camadas se sobrepõem sem limites nítidos (o todo se completa em visão planetária).
É possível que as sucessivas inversões dos elementos do quadro propostas pelo artista sejam provocações ao tempo a partir do surgimento de um novo espaço. Por exemplo, a superfície tátil da tela desaparece e apenas a grade espacial – normalmente ausente – é concretamente apresentada. É justo a estrutura simbólica do espaço que poderíamos tocar se fosse preciso. Se estas noções (grade e plano) centrais para a ruptura moderna na pintura, são de certo modo retomadas, o artista irá problematizá-las de modo tangencial, mas distinto da clássica passagem das colagens cubistas. A mesma passagem com que Clement Greenberg construiu sua defesa kantiana da pintura planar (dominante na crítica brasileira das últimas três décadas).
A possibilidade de integração entre o espaço planar e o tridimensional resulta aqui de uma espécie de turbulência provocada por sucessivas mutações entre virtual e concreto. A sua zona de ocorrência há muito vem sendo mapeada pelo modernismo: é aquela onde a tela pode saltar da condição de suporte para a de objeto e a cor tornar-se capa ou penetrável.[2] Nesta região, o ar que circula entre as camadas de espaço é o mesmo que nos envolve. Em trabalhos anteriores do artista, Glória Ferreira identificou uma “transição do desenho-à-pintura-à-escultura, em francas operações híbridas”. O que agora surpreende é o modo como, arquitetado pela luz que migra de um plano a outro, surge um tipo de espaço que como um sopro úmido na vidraça lembra a densidade das nuvens.
Como um instante, um recorte temporal, da sombra projetado por um possível relógio de sol, o trabalho “o sole mio” (nome provisório) convoca um universo de simbologias e significações suscitadas pela essência fugidia do “duplo” que cada um de nos carrega consigo. Tida com enganosa no célebre mito da Caverna de Platão ou como possibilidade de representação do real em sua intricada relação com a luz construindo perspectivas de tempo e lugar, a sombra é aqui, não um símbolo de perda que povoa a imaginação fantástica, mas um acréscimo. Um elo entre o Sul e o Norte como uma conversa contrariando os dados da cosmologia em favor de um possível encontro. De certa maneira, estabelece um diálogo com a formulação de Joaquin Torres Garcia, que nos anos quarenta, ao fundar a Escuela del Sur, voltada para a construção de uma identidade latino-americana, afirmava “nuestro norte es el Sur. No debe haber norte, para nosotros, sino por oposición a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el mapa al revés, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posición, y no como quieren en el resto del mundo.”
Em contexto em que nossa experiência espacial se transforma com a cultura digital, ao intervir no espaço, criando um ambiente em que se juntam sombras e pedras de hemisférios opostos, Everardo Miranda sugere uma nova experiência do lugar e a possibilidade de novas conexões se inscreverem na vida cotidiana em que Sul e Norte percam seus referencias de hierarquias e dominações.
Enquanto procedimento estético, “o sole mio” condensa a relação entre escultura e pintura, em intrínseca comunhão com o espaço, que caracteriza os trabalhos de Everardo Miranda. A arquitetura é parte do campo de operação, elemento da situação perceptiva criada.
ANOTAÇÕES SOBRE “O SOLE MIO”:
o projeto do Outlet Soratte reproduz as formas do Coliseu, do Circo Maximo e do Foro Romano, construções notáveis do início da era cristã. O percurso do visitante neste “open mall” remete à experiência de andar pelas ruas de Roma. Uma sucessão de pequenas ruas irregulares que desembocam em grandes e expressivas piazzas.
O projeto do mosaico buscou uma referência nas Linhas de Nazca, linhas traçadas de forma aparentemente aleatórias, mas que se supõe, teriam sido traçadas para observação do céu, da mesma época das construções citadas pelo projeto de arquitetura.
As “sombra” projetadas/desenhadas no chão correspondem à presença de um sol que só poderia estar no hemisfério sul, um sol do Rio de Janeiro, projetando sombras na direção sul, ao contrário das sombras no hemisfério norte que são projetadas na direção norte.