O escultor e a pintura em algum lugar têm que se encontrar. Em uma de suas exposições no início dos anos 1980, Everardo Miranda apresentou chapas de alumínio recortadas com precisão geométrica, pintadas de preto, de mínima espessura. Uma dobrada, em aço e madeira, se apoiava no chão e boa parte se fixava na parede.
Ali, na Galeria Sergio Milliet da Funarte, dentro do programa Espaço ABC, há pouco mais de trinta anos, já havia esse diálogo, entre o ponto de apoio tradicional da escultura – o solo – e aquele da pintura, a parede. As chapas pretas muito finas sobre a parede eram quase pinturas monocromáticas. E conversavam com seu par apoiado no chão.
Certos verbos, quando no infinitivo, indicam acontecimentos indeterminados no tempo. A cor, na série de trabalhos apresentados por Everardo Miranda na Galeria Anita Schwartz, é apresentada no infinitivo: seu tempo é indeterminado.
Estas sutis densidades da cor emanam de tramas recortadas em alumínio, quase sem espessura, suspensas como o quadro na parede. Situam-se na região de afastamento entre a pintura e a arquitetura. Como na vertente construtiva brasileira, com que o artista claramente dialoga, a investigação do espaço se estabelece em uma zona de contato entre o plano e o tridimensional.[1] Mas, distinguindo-se dos interlocutores históricos, os planos ativados por Everardo Miranda produzem indeterminações da cor no espaço, que são percebidas apenas com o tempo. Como na tradição construtiva, está em jogo uma continuidade peculiar entre a pintura e a escultura, ambas tomadas em sentido ampliado por um diálogo com a arquitetura. Porém, aqui, limites e distâncias são embaçados, como quando atravessamos nuvens em uma estrada.
Enquanto constrói grades brancas, como a própria parede, de modo que pudessem talvez se unir à arquitetura e reativá-la em um mural monocromático, o artista, como um pintor cético que secretamente deseja as cores, trabalha para que esta ressurja nas cercanias de seu secreto lugar de origem. É que, como nebulosa, a luminosidade segue através do espaço, cruza distâncias. A densidade limiar da luz preenche o vão entre a pintura e a parede. A cor, partindo de onde não é vista, migra entre as superfícies, existe no seu rastro. Vive fora do quadro: rumor e névoa. Todas as distâncias agora são alteradas, perdem nitidez. Então, a incerteza sobre as coisas nos envolve.
Mesmo que constantemente desafiada, a projeção do espaço em perspectiva se confunde com o olhar natural e organiza, a todo momento, o modo como percebemos o espaço. A grade – muito presente no trabalho de Everardo –, é retomada como fator de movimentação ótica daquele espaço historicamente sedimentado. É um elemento necessário para um processo experimental, uma reflexão sobre como percebemos o espaço no momento mesmo em que o habitamos, na iminência do aparecimento. As ressonâncias da tradição da pintura são mais fortes quando o desenho da trama busca reverter, com volume e profundidade ilusionistas, sua própria condição planar. Porém, logo que a proximidade com a arquitetura evoca o plano, a ilusão contradiz a experiência concreta.
Em O Sole mio (2009) a experiência de imersão acontece em um espaço público. Para o outlet Soratte, próximo de Roma, Everardo desenha um piso cuja trama em cinzas evoca o claro–escuro da tradição da pintura italiana. E com a luz natural, as sombras projetadas no piso pela arquitetura se integram ao jogo ilusionista desenhado a partir de duas grades deslocadas. O visitante transita física e visualmente em espaços cujas camadas se sobrepõem sem limites nítidos (o todo se completa em visão planetária).
É possível que as sucessivas inversões dos elementos do quadro propostas pelo artista sejam provocações ao tempo a partir do surgimento de um novo espaço. Por exemplo, a superfície tátil da tela desaparece e apenas a grade espacial – normalmente ausente – é concretamente apresentada. É justo a estrutura simbólica do espaço que poderíamos tocar se fosse preciso. Se estas noções (grade e plano) centrais para a ruptura moderna na pintura, são de certo modo retomadas, o artista irá problematizá-las de modo tangencial, mas distinto da clássica passagem das colagens cubistas. A mesma passagem com que Clement Greenberg construiu sua defesa kantiana da pintura planar (dominante na crítica brasileira das últimas três décadas).
A possibilidade de integração entre o espaço planar e o tridimensional resulta aqui de uma espécie de turbulência provocada por sucessivas mutações entre virtual e concreto. A sua zona de ocorrência há muito vem sendo mapeada pelo modernismo: é aquela onde a tela pode saltar da condição de suporte para a de objeto e a cor tornar-se capa ou penetrável.[2] Nesta região, o ar que circula entre as camadas de espaço é o mesmo que nos envolve. Em trabalhos anteriores do artista, Glória Ferreira identificou uma “transição do desenho-à-pintura-à-escultura, em francas operações híbridas”. O que agora surpreende é o modo como, arquitetado pela luz que migra de um plano a outro, surge um tipo de espaço que como um sopro úmido na vidraça lembra a densidade das nuvens.
O escultor e a pintura em algum lugar têm que se encontrar. Em uma de suas exposições no início dos anos 1980, Everardo Miranda apresentou chapas de alumínio recortadas com precisão geométrica, pintadas de preto, de mínima espessura. Uma dobrada, em aço e madeira, se apoiava no chão e boa parte se fixava na parede. Ali, na Galeria Sergio Milliet da Funarte, dentro do programa Espaço ABC, há pouco mais de trinta anos, já havia esse diálogo, entre o ponto de apoio tradicional da escultura – o solo – e aquele da pintura, a parede. As chapas pretas muito finas sobre a parede eram quase pinturas monocromáticas. E conversavam com seu par apoiado no chão.
Depois de tanto tempo, o trabalho se apresenta em toda sua dimensão pictórica na Galeria Anita Schwartz. As grandes superfícies de parede impregnadas de óxido de ferro são murais contemporâneos e não deixam de trazer para o presente a memória moderna na sua delicada vertente em que a arte – de Rothko a Mira Schendel – nos ensinou como ela aparece no mundo. Depositado por fricção pelo artista, o pigmento parece que sempre esteve lá, de alguma forma escondido, e resolveu um dia surgir numa aparição monumental. A escala nos envolve e nos contém. De certo modo, somos possuídos por essa cor de ferrugem ancestral de nossas montanhas do interior. Mas nessa posse, como que abraçados pela pintura, não há nenhum gesto violento. Como em toda doutrina do aparecimento da arte, predomina a afabilidade, de quem apenas diz: “Ó eu aqui.”.
Mas agora, contemporânea, paradoxalmente, aparece com história; história recente, mas história, logo nesse mundo de hoje que quer tudo menos história. O cubo branco, perfeito, para receber a obra estava lá. Desde 2008, este espaço recebeu diferentes exposições. Esses cinco anos de história estavam lá, invisíveis, que os diferentes materiais (pastas, massas, emplastros, tintas de diferentes composições) e as pequenas cirurgias plásticas para restaurar o cubo branco, escondidos embaixo da superfície perfeita da tinta branca, mas não mortos, como qualquer passado. A camada de pigmento faz aparecer a história viva das paredes, as manchas, os retoques, as pinceladas. Então, o aparecer agora é outro. Não é a tela virgem de Rothko ou o papel oriental de Schendel. Não aparece; faz aparecer, não o invisível, mas o imprevisível. Revela o que o espaço moderno convencional tenta em vão mascarar: a superfície não é neutra, nem virgem, é ativa e foi maculada pelas inúmeras intervenções que sofreu. E desse modo surge um diálogo, uma conversa, sussurros, entre a cor que quer se impor e a história do branco que a recebe.
Não é por acaso que a substância da pintura sobre a parede é a mesma que está presente em inúmeras das esculturas de Everardo Miranda. A relação de parentesco entre as dimensões pictórica e escultórica do trabalho determinada pelo material aparece como algo inevitável como se quisessem reforçar a origem comum. Esse parentesco substantivo incomoda menos no presente que sua firme descendência moderna: a linguagem concisa, a escolha monocromática, o elogio do espaço vazio enfatizado pela forte presença nas paredes. Tudo isso reserva um lugar para a recepção moderna da obra, muito estranho no mundo contemporâneo, no qual as extravagâncias cromáticas estão para todo lado, os temas voltaram com muita ênfase, às vezes enfáticos até demais, a ponto de eclipsar qualquer manifestação da forma, a estética é lançada para as relações humanas sem mediação de qualquer objeto digno de maior atenção.
Essa exposição de Everardo Miranda, fazendo um uso contemporâneo do espaço, insiste na potencialidade moderna na qual, em diversos momentos, razão e poética puderam andar juntas como parceiras de uma mesma aventura, apenas a pequena história vem perturbar.
ANOTAÇÕES SOBRE “ASECO I 2013”:
1
Relaciono este trabalho com a instalação/performance dos bambus,” Tensores” de 1977. Em comum a verificação dos limites do espaço da ação. Também com os desenhos da “série Estocolmo”, nos quais a leitura se dá nas bordas e limites das áreas definidas.
2
O pigmento escolhido é o óxido de ferro, obtido através de oxidação, ou seja, remete à superfície enferrujada de uma chapa plana de ferro.
3
A fricção com o pigmento seco, em pó, fixado por atrito, afirma a parede. Fica mais evidente o que se deixou de fazer e que o que foi finalmente realizado, é resultado de uma ação.
4
O que sobra, o que cai no chão durante a aplicação do pigmento sobre a parede, o excesso, permanece como testemunha da ação, memória da execução do trabalho.
5
Outro diálogo que se estabelece é com as pinturas rupestres de Lascaux ou Altamira, ou ainda com as da Serra da Capivara no Piauí. As primeiras manifestações conhecidas de “pintura”, que foram executadas com esse pigmento, – o vermelho é óxido de ferro.
6
Traz ainda o registro das telas de 1975, definidas com o resultado da pressão do grafite do lápis contra o tecido da tela, revelando a estrutura do bastidor de madeira, dos chassis.
7
A utilização das três paredes da galeria cria interioridade. Coloca o espectador “dentro” de três finas lâminas metálicas, a pele enferrujada da chapa de aço, escultura de espessura mínima e rarefeita. Um espaço virtual, negativo. Uma desocupação espacial? (Oteiza)
8
O óxido seco aplicado sobre a parede revela as pequenas irregularidades resultantes de sucessivas intervenções realizadas sobre ela.
9
Ao recobrir a parede, sua “história” se revela.
10
Sua elaboração remete à experiência do projeto “O Sole Mio”, onde foram embaralhados os limites da pintura, da escultura, da arquitetura e da instalação.
11
A execução é resultado de um de um projeto, – o resultado, uma surpresa.
12
Traz à memória as esculturas realizadas na exposição do ABC, as chapas de alumínio pintadas de preto, com espessura mínima, planas, uma presença quase “pictórica” que também exibiam este diálogo com a parede, com a arquitetura.
13
Assim como nas “TRAMAS”, vazadas, que nos permitem ver a parede “através “delas. A cor se espacializa e se projeta sobre a parede.
14
Como em outros trabalhos, a soma de processos e experiências, – uma acumulação que em algum momento resulta numa solução simples.
A densidade da obra é obtida pelo acúmulo de experiências realizadas e das soluções encontradas.
Everardo Miranda